DIÁRIOS DE CAMPANHA
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A equipa do projecto CIRCLAR, Pedro Pina e Sandra Heleno, já está na Antártida, onde chegou a 19 de Janeiro de 2017. Tudo começou em Lisboa uns dias antes, a 14 de Janeiro, rumo ao hemisfério sul. O périplo até à ilha de King George nas Shetland do Sul, como sempre longo, incluiu trânsito de avião por Buenos Aires e Rio Gallegos (Argentina), seguido de uma viagem de autocarro pela ‘Ruta del Fin del Mundo’ até Punta Arenas no Chile. A tradicional e obrigatória chegada antecipada a Punta Arenas (3 dias antes do voo para a Antártida) foi passada a comprar pequenos materiais, afinar o planeamento da campanha e a acabar algum ‘trabalho de casa’ que ainda estava pendurado. Fomo-nos também encontrando com outros colegas portugueses, e de outras nacionalidades, que também estavam à espera de embarcar para a Antártida. O ponto de encontro, normalmente para irmos jantar, é já um clássico, e só podia mesmo ser junto à estátua de Fernão de Magalhães. O voo para a Antártida, fretado pelo Programa Polar Português PROPOLAR e que veio completamente cheio de investigadores de várias nacionalidades, correu sobre rodas. Saiu e chegou no horário previsto, pois o tempo estava excelente, algo que nunca me aconteceu nas 4 missões anteriores que fiz até cá. Como penso que ele será descrito noutro post não entrarei em mais pormenores. Na península de Fildes onde aterramos, o céu estava azul e praticamente limpo, e a temperatura rondava os 6 graus positivos, portanto um dia antártico totalmente anormal. Descemos a pé do aeródromo até à base de chilena de Escudero onde nos viemos instalar. A base está sobrelotada porque alguns navios, que era suposto apanharem muitos dos investigadores acabados de chegar, estão atrasados vários dias. Esta já é uma situação normal, sobretudo aqui em Escudero que é um local de passagem mais frequente, e todos temos de nos apertar um pouco, pois ninguém fica na rua. As expectativas de que a campanha nos corra bem são, como sempre, altas, mas sabendo muito bem que tudo vai ter de ser gerido dia a dia, conforme o tempo nos permita ou não sair para a rua.
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À base chegaram esta manhã 5 cientistas uruguaios que vão realizar algumas recolhas de água. Junto-me a eles para aproveitar a pesca. Devido ao excesso de lotação a Carmen não pode ir. Seguimos em direção a Fildes atravessando o istmo que liga a Ilha de Ardley a King George... isto seria normal na maré alta, mas a maré está baixa e esta opção obriga-nos a ter de arrastar o barco sobre cerca de 6 metros de gravilha... Uff, parece que afinal a Carmen safou-se de boa.
Ao longe o glaciar da ilha Nelson parece um imenso lençol branco. E aqui as baleias continuam chuuuuufffff...e depois outro chuuufffff... mas temos de voltar pois ainda podemos aproveitar para pescar.
Pelo caminho acompanham-nos alguns pinguins saltitões que podem dar-se ao luxo de brincar enquanto uma foca leopardo dorminhoca se espreguiça sobre o gelo. Pescamos junto à Ilha dos Geólogos, um pequeno ilhote na Baía de Great Wall. Não corre mal e conseguimos cerca de 25 peixes... infelizmente são de duas espécies distintas, ambas de interesse, mas cada uma insuficiente em número para o que queremos fazer... Há que voltar amanhã. Afinal a Carmen perdeu um ótimo dia para estar no mar... Carmen Sousa e Pedro Guerreiro, 18 Janeiro 2017, Ilha King George Hoje é dia de gala... Há vários dias que se prepara a visita do Ministro da Ciência e Tecnologia da China, com discussões sobre a melhor forma de o receber, disposição de mesas na refeição etc. Desde de manhã que a azáfama é muita mas a hora de chegada vem sendo adiada em função da saída do voo desde Punta Arenas. A receção foi bastante formal, com a pompa chinesa. Cá fora ensaiaram-se coreografias e distruibuiram-se bandeirolas. A comitiva de cinco carros, também eles com bandeirolas, chega já depois do meio dia e encontra todos fardados na praça. Nós acabámos por participar no alinhamento e depois dos discuros, em chines evidentemente, ficar também na foto de conjunto para mais tarde recordar. Este ano a China recebe as reuniões do Tratado Antárctico e parece que esta visita se insere num conjunto de actividades relacionadas. A sua visita teve o intuito de ver as condições gerais, acomodações e falar um pouco com todos, cientitistas e técnicos, mas principalmente com os que vão residir durante o ano inteiro, e de manter contactos com outras bases. Após a visita da comitiva à ilha Ardley, onde se encontra uma colónia de pinguins, o dia termina com um jantar mais esmerado que o normal, cheio de boa disposição e simpatia!! Com mais discursos e cumprimentos, desejos de colaboração e votos de boa campanha.
e lá se foi um polar… a chegada a Santiago do Chile não começou da melhor maneira. Depois de tantas horas no avião, todos os passageiros estavam ansiosos de respirar um pouco de ar puro – a verdade é que ar puro é coisa rara aqui para os lados da capital Chilena, pois o smog é muito frequente, com uma implicação muito danosa para qualquer fotógrafo que pretenda uma fotografia ícone desta cidade – a difusidade da cadeia Andina na envolvência da cidade. Com a confusão instalada na zona da recolha das bagagens, o desejo de sair para fora do aeroporto e com o anúncio da mudança do número da cinta nº1 para a cinta nº5, gerou-se um movimento repentino e em massa de todas as pessoas para o novo local de recolha das bagagens. Tinha o polar enfiado nas alças da minha mochila e, acredito que intencionalmente ou não, terá sido nesta altura que ele se sublimou. A verdade é que no dia seguinte antes da partida para Punta Arenas, ainda fui à secção dos perdidos e achados mas… não estava lá niente!! é domingo em Santiago… depois de apanhar o bus para o centro da cidade e de deixar a bagagem no hotel, lá fui cirandar pelo centro da cidade. No entanto os 37ºC rapidamente refrearam esta vontade – sair do Inverno de Portugal para no dia seguinte apanhar o Verão Chileno é demasiado drástico e repentino. Mas lá fui caminhando lentamente pelas avenidas e ruas de Santiago achando um movimento totalmente distinto do das duas últimas visitas a esta cidade. Nas redondezas do Palácio de la Moneda, normalmente repletas de pessoas, estavam às moscas!! O meu primeiro pensamento, quase imediato, é que uma forte recessão económica tinha apanhado de surpresa os chilenos neste último ano (tal foi o trauma dos últimos anos e que ainda está bem presente em nós, povo lusitano). No entanto, o facto de as lojas estarem quase todas fechadas trouxe a explicação lógica para os factos - é domingo em Santiago! à falta de melhor, bora para o Cerro de Santa Lucia… é incontornável uma visita a Santiago do Chile sem apanhar o funicular para o Cerro de San Cristóbal de modo a se ter uma imagem desta metrópole na sua plenitude. Este cerro eleva-se 370m das suas redondezas, originando o relevo mais elevado desta cidade, e a vista em todas as direcções é de tirar a respiração. Já estava nas últimas quando pensei – “chega! Vamos lá para cima passar o resto da tarde” – e lá fui eu… e de lá vim eu! É que o maralhal era tanto, tanto, a bicha para o funicular era tão extensa que antevi o tempo que iria para ali ficar, e ainda por cima à chapa do sol. Antevi, igualmente, que não tinha a força anímica suficiente para escalar o cerro a pé. Então, lá fui eu em direcção ao Cerro de Santa Lucia que está localizado no centro da cidade, e que, do ponto de vista geológico, faz parte de um alinhamento de estruturas vulcânicas (com a designação de Manquehue–San Cristóbal–Santa Lucía belt) que se estende por vários km’s nesta cidade, segundo uma orientação NE-SW. Corresponde a uma estrutura tipo dique, com 300 metros de espessura, relativamente à zona circundante e que do ponto de vista geoquímico corresponde a um basalto andesítico, com uma idade de 20 Ma. Tem um relevo pronunciado, com uma altura de 70 metros relativamente à área envolvente, e daqui consegue-se obter uma das melhores vistas de Santiago, na eventualidade de não se conseguir subir o funicular para o Cerro de San Cristóbal (que constitui o centro da estrutura vulcânica acima referida, constituída por rochas vulcânicas lávicas do tipo dacito e riólito, bem como rochas piroclásticas do tipo ignimbritíco). Foi neste cerro que Charles Darwin definiu a vista sobre a cidade de “certainly most striking”, quando a visitou em 1833. E o senhor Charles tinha toda a razão… no voo de Santiago para Punta Arenas não esquecer: reservar atempadamente um lugar à janela a “bombordo”…
nos voos da companhia de aviação chilena LAN, no trajecto que une as cidades de Santiago a Punta Arenas, que é o único que fiz até ao presente, é possível reservar muito antecipadamente o lugar (pelo menos um mês e meio antes). Esta possibilidade deve ser obrigatoriamente aproveitada para reservar um lugar à janela a “bombordo”, no sentido N-S, para se poder desfrutar do esplendor da cadeia andina - ela é vulcões, ela é relevos impressionantes, ela é glaciares, ela é vales esplêndidos, ela é, no seu todo, um verdadeiro espectáculo imperdível!! Ela é isto tudo se… não existir uma cortina de nuvens entre as montanhas e o avião ou se o lugar à janela ficar sobre a asa!!! Não, não! Não estejam a pensar que me calhou um lugar traiçoeiro como este. Na reserva que fiz, e para evitar a surpresa efeito-asa, atirei-me logo para o lugar da janela da última fila. O problema foi mesmo as nuvens. Junto as melhores, mas ainda assim, fraquinhas fotos que tirei (nada comparáveis às do ano passado), para se ter uma ideia do que falo. Teresa Cabrita, Diretora Executiva PROPOLAR Pela 6 ª vez, Portugal contribui para a logística científica na Antártida fretando um avião que transportará cientistas e técnicos entre Punta Arenas no Chile e o aérodromo Teniente Marsh na ilha de Rei Jorge, na Antártida (ida e volta).
A missão decorrerá no dia 19 de Janeiro e será a âncora da campanha antártica portuguesa 2016-17, que decorrerá até ao mês de Março com o apoio de vários países parceiros. Os voos transportarão 122 membros dos programas português, búlgaro, chileno, chinês, espanhol e sul coreano. Uma vez que Portugal não possui infraestruturas permanentes na região antártica, as campanhas antárticas portuguesas são baseadas na forte cooperação internacional, estabelecida pelo PROPOLAR durante a última década, com países como a Argentina, Bulgária, Brasil, Chile, China, Espanha, Estados Unidos da América, Republica da Coreia e Uruguai, e na gestão e partilha de logística com os programas polares parceiros. A Campanha Antártica Portuguesa 2016-17 que se desenrolará até Março 2017 é financiada pelo Programa Polar Português (PROPOLAR), através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES). A campanha antártica PROPOLAR 2016-17 integra 7 projetos de investigação, levando 10 cientistas portugueses e 3 investigadores espanhóis, a várias áreas da Península Antártica, nomeadamente na ilha do Rei Jorge, ilha de Decepção e ilha Livingston (Arquipélago das Ilhas Shetland do Sul), na Caleta Cierva (Costa Danco), e na Ilha de Amsler (Arquipélago de Palmer). Os projetos nacionais são coordenados por 6 universidades e centros de investigação públicos, principalmente nas áreas das ciências biológicas, da criosfera, do ambiente e da Terra, alguns visando estudar os efeitos das alterações climáticas. Os projetos são os seguintes: ANTIMUNE - Evolução e constrangimentos da resposta imunitária em peixes nototenioides, Coordenador: Adelino Canário (Centre for Marine Sciences, Universidade do Algarve - CCMAR-UAlg), email: acanario@ualg.pt. Link do projeto: http://www.propolar.org/antimune.html. CIRCLAR - Cartografia e monitorização de círculos de pedras ordenados com imagens de ultra elevada resolução na Antártida Marítima, Coordenador: Pedro Pina (Centro de Recursos Naturais e Ambiente, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa - CERENA/IST-ULISBOA, email: ppina@tecnico.ulisboa.pt. Link do projeto: http://www.propolar.org/circlar.html. CRONOBYERS - Deglaciação holocénica das áreas livres de gelo na ilha Livingston (ilhas Shetland do Sul, Antártida), Coordenador: Marc Oliva (Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do território, Universidade de Lisboa - CEG/IGOT-ULISBOA), email: oliva_marc@yahoo.com. Link do projeto: http://www.propolar.org/cronobyers.html. GEOPERM III - Estudo geológico, geoquímico e do permafrost nas Penínsulas de Fildes e Barton, Ilha King George, Antártida, Coordenador: Pedro Ferreira (Laboratório Nacional de Energia e Geologia – LNEG), email: pedro.ferreira@lneg.pt. Link do projeto: http://www.propolar.org/geoperm-iii.html. Hg-PLANKTARCTIC - Interações entre fito- e zooplâncton e o ciclo do mercúrio, em águas da Ilha de Decepção com fontes vulcânicas de mercúrio, Coordenador: Carla Gameiro (Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa – MARE/FC-ULISBOA), email: clgameiro@fc.ul.pt. Link do projeto: http://www.propolar.org/hg-planktarctic.html. PERMANTAR 2016-17 - Permafrost e alterações climáticas no ocidente da Península Antártica, Coordenador: Gonçalo Vieira (Centro de Estudos Geográficos, Instituto de Geografia e Ordenamento do território, Universidade de Lisboa - CEG/IGOT-ULISBOA), email: vieira@campus.ul.pt. Link do projeto: http://www.propolar.org/permantar-2016-17.html. PERMATOMO - Estudo geoeléctrico da evolução do permafrost nos sítios CALM e Papagal junto à Base Antárctica Búlgara (Ilha Livingston) e junto à Base Antárctica Coreana (Ilha King George) Antártida, Coordenador: António Correia (Institute of Earth Sciences, Universidade de Évora ‑ ICT-UEvora), email: correia@uevora.pt. Link do projeto: http://www.propolar.org/permatomo.html. Portugal beneficia assim das excelentes condições das regiões polares como pontos de vantagem para o desenvolvimento da ciência portuguesa, da investigação e de tecnologias de ponta, em áreas e temas científicos que permitem realizar ciência de excelência, num contexto de cooperação e colaboração internacionais. Depois de perder uma hora na vida a voar para Madrid, já a estou a recuperar e o saldo, quando aterrar em Santiago do Chile, até será positivo – um bónus de 2 horas nas pouco mais de 438 mil horas já vividas até agora. Isto começa bem!! Entretanto a única coisa interessante a relatar nesta viagem, com o avião completamente apinhado de pessoas, tem a ver com a nova experiência sensorial, com a designação “concertos a bordo”, que a Ibéria Airlines proporciona aos seus clientes nas viagens intercontinentais, de modo a que as longas horas de trânsito não custem tanto a passar. O concerto criteriosamente seleccionado para esta viagem, que durou cerca de 13 horas, teve como título “concerto nocturno sobre o atlântico, de crianças para adultos, em si bemol maior”, interpretado por um fabuloso trio de lindos bebés com um vozeirão único e inalcançável, gerado quando as suas perfeitas e doces boquinhas se escancaravam, acompanhados por um espernear e esbracejar desenfreados e intensos, para que os sons magnificamente gerados, nas correspondentes cordas vocais, se espalhassem por toda a assistência a bordo do airbus A320, que cumpria escrupulosamente o silêncio, que tem de ser de oiro quando se ouve um concerto desta magnitude. Depois do “entusiasmo” inicial ao ouvir a miscelânea conjunta das três vozes, incluídas no intervalo de escalas sonoras que vai do tenor-dramático ao do barítono-lírico, que me deixaram os olhos arregalados e as pupilas dilatadas, procurei nos meus acessórios, cuidadosamente preparados em casa, o equipamento que metaforicamente me atribuía o passaporte para uma calma e apaziguante noite sobre o atlântico: um comprimidinho de Olanzapina Mylan, a venda-para-os-olhos imprescindível e os insubstituíveis tampões-para-os-ouvidos, estrategicamente conjugados com a bela almofadinha e cobertor gentilmente cedidos pela Iberia. E é então que tive o meu primeiro calafrio desta missão – a percepção do esquecimento dos tampões…. As horas passaram, não sei quantas, nem quis saber, lá fechei os olhos para mais tarde os abrir como resultado de uma tremenda sede que tomou conta dos meus sensores cerebrais. Toca de carregar no botãozinho para chamar a assistente de bordo – sem resultado algum!! Depois de várias insistências, sem resposta da tripulação, decidi experimentar as minhas capacidades artísticas de criar um som harmonioso, ao carregar continuamente no botão de chamada das “hospedeiras”, decidido a somente parar até me aparecer uma! La acabou por dar à costa da fila 29 “um” hospedeiro, com cara de caso - com uma grande telha - diria um simples português – perguntando-me, um pouco irritadamente, o que eu queria? Lá lhe respondi, com uma expressão desconsolada, que estava muito desidratado e que necessitava urgentemente de um copinho de água. A sua reacção deixou-me boquiaberto: fez-me olhar para o sinal que indicava a necessidade de estar com os cintos apertados, referindo-me, em tom de complemento, que nesta situação de elevada turbulência aérea a tripulação não estava autorizada a sair dos seus lugares para acudir aos passageiros e satisfazer as suas necessidades mais prementes, virando-me imediatamente as costas e abalando para o seu poiso na cauda do airbus!! Momentaneamente, fiquei baralhadíssimo, pois não se sentia uma única vibração!! O avião atravessava o atlântico calma e serenamente….
La fui buscar a teoria ubiquamente posta em prática na ciência – teoria das múltiplas hipóteses alternativas – para concluir que toda a tripulação tinha assistido entusiasmada e integralmente a este fabuloso concerto nas nuvens, e que agora se regozijavam de um merecido descanso!! A luz dos cinturones de seguridad só se apagou ao fim de uma hora. Finalmente consegui, então, hidratar-me. Acordei, ainda nas nuvens, com a paisagem magnífica dos Andes… Hoje informaram-nos, durante o pequeno-almoço, que o dia ía ser atarefado e que precisavam da nossa ajuda na cozinha da parte da manhã e ao final de tarde, do qual nos disponibilizamos prontamente. A nossa tarefa foi descascar, lavar e cortar legumes que passo a especificar: eu fiquei responsável por uma enorme quantidade de um legume que desconheço o nome mas, não é cebolinho nem alho francês e o Pedro ficou com uma responsabilidade mais diversa começando pelas batatas, couve coração, cogumelos, acabando por me ajudar no legume mistério. É de salientar a grandiosidade da cozinha e respetivos utensílios nomeadamente as facas, no qual fizemos de questão de elucidar-vos com algumas fotografia. A compreensão com o cozinheiro foi meramente ilustrativa pois ele só fala chinês, mas, lá nos conseguimos entender, cumprir as tarefas que nos atribuíram e trabalhar harmoniosamente. Entretanto chegou uma cientista chinesa para nos ajudar e, para nossa satisfação, tem umas noções de inglês o que tornou, a partir desse momento, o diálogo e entendimento mais percetível e acessível. Apesar do cheiro a comida estar impregnado na nossa roupa, esta experiência foi bastante engraçada e prazerosa pois nunca tínhamos vivenciado tal função em tão larga escala. Em sinal de agradecimento, ainda tivemos uma oferenda, por parte do chefe de cozinha, que nos cortou uma laranja, muito doce, para comermos. Modéstia à parte, trabalhámos bem em equipa e fomos rápidos e eficientes, o que agradou o chefe. Para terminar bem o dia, finalmente, colocaram o contentor no cais para que possamos começar a trabalhar!
Em Great Wall, como em todas as bases antárcticas, o calçado utilizado no exterior fica à entrada dos edifícios. Muitas têm mesmo uma antecâmara para o efeito. É que dependendo do tipo de investigação e zonas percorridas, as nossas botas podem vir molhadas, por neve, gelo, água ou água salgada, enlameadas, cheias de lodo, com restos de vegetação, com dejectos de pinguim, ou com misturas avulsas destas várias possibilidades. Assim, cada vez que entramos descalçamos, e cada vez que saímos calçamos! E no interior dos edifícios a rotatividade dos chinelos chega mesmo a ser algo desconcertante, e nem sempre os há para todos, com caixas cheias de peças avulsas a aparecer cada vez que aumenta o número de convivas para o jantar. Aqui em Great Wall a nossa rotina diária leva-nos a quatro edifícios: o dormitório, o refeitório, os banhos e o laboratório. Calçamos de manhã, descalçamos para o banho, calçamos para voltar ao quarto, descalçamos quando chegamos ao dormitório, calçamos para sair para o pequeno-almoço, descalçamos para entrar no refeitório, calçamos para sair, descalçamos quando chegamos ao laboratório, calçamos para ir recolher material ou verificar os peixes, descalçamos para voltar a entrar, calçamos para ir almoçar, descalçamos ao entrar no edifício, calçamos para sair e assim sucessivamente até que descalçamos para ir dormir. Uff...!!! Neste processo trocamos de chinelos dezenas de vezes por dia, que passam pelos dois pés dos vários locatários da base... há muitos pares que não estão juntos, e cada um calça o que está mais à mão... ou ao pé neste caso. E nas horas de ponta a quantidade de pessoas a chegar deixa na antecâmara um alvoroço de pares de botas espalhadas pelo chão... quais são quais à saída? Para complicar, o contingente chinês recebe do seu programa antárctico dois pares de botas distintas, mas idênticas para todos... é de facto interessante que não as confundam. Tanto foi o caos que nos últimos dois dias um dos membros da equipa da base criou uma espécie de parque de estacionamento para sapatos, com fita adesiva a delimitar zonas para deixar as botas... Ora é aqui que entra a saga das botas viajantes: as minhas! As minhas botas não têm nada que ver com as dos chineses e no entanto desapareceram logo no primeiro dia de Antarctica. Explico: dia 8, após o almoço, viemos para o laboratório e as botas ficaram à entrada, como deve ser. E quando quis sair... não estavam. Depois de verificarmos com o pessoal e cientistas da base lembrá-mo-nos que por essa hora fomos visitados por um grupo de turistas... chineses... e que provavelmente alguém trocou as botas. Ora agora perguntam vocês como pode alguém não reconhecer as suas proprias botas. Pois, pergunto eu também. Mas parece que pode acontecer... e assim começa a história. Falámos com Alpha Charlie, AC, o nome de código de Alejo Contreras, responsavel da DAP-Antartic Airlines e cicerone destes turistas, que entretanto haviam já partido no voo de volta a Punta Arenas. Et voilá, com a descrição e fotos das botas, AC conseguiu encontrar o distraído “meliante”, recuperar as botas e fazer com que as colocassem num voo de volta dentro de 2 dias. E pronto, pensam vocês, acabou aí a história, com um par de botas extra, sem dono e perdido algures em Great Wall. Pois era bom mas não foi assim. As botas voltaram a King George num voo que trazia mais alguns chineses e AC deixou-as com o chefe da base chinesa para as trazer... para a base. Este, que entretanto tinha à sua responsabilidade os outros chineses em trânsito para a base brasileira Comandante Ferraz, em reconstrução, não percebeu bem as indicações de AC, e levou o grupo de chineses (e às minhas botas) até à praia para embarcarem no navio brasileiro para a Baía do Almirantado, acessível por helicóptero ou 3 horas de navio. Distribui-lhes o equipamento e sem se aperceber, entregou as minhas a botas a um dos operários chineses que havia recebido apenas dois dos três pares devidos. E assim, estas botas foram fazer mais um percurso sem mim, e sem o meu conhecimento... até que AC voltou a Great Wall para recolher as botas deixadas pelo turista chinês (que neste momento continuam por identificar definitivamente...) e percebemos que as minhas não voltaram... Depois de esclarecermos o que se teria passado, contactamos a comitiva chinesa em Ferraz, o chefe directamente, e eu através do interprete chinês-brasileiro da empresa de construção que conheci o ano passado aqui em Great Wall.
Mais algum trabalho de detective, num twist de princípe da Gata Borralheira, e eis que foram novamente identificadas as botas! Mas agora, como as fazer voltar a Great Wall? Eis que num conjunto de coincidências, um helicóptero fazia hoje, dia 13 Janeiro, o périplo entre algumas bases... e assim, ás 15 horas de hoje, 120 horas depois do seu desaparecimento, com quase 5000 km percorridos, entre avião, navio e helicóptero, e com a intervenção de pessoas na Antárctica, América do Sul e na China, volto a reunir-me com as minhas queridas botas!!! A cooperação internacional juntou-se por uma grande causa! O tempo passa e estamos a ficar algo apreensivos quanto à capacidade de levarmos a cabo todas as actividades planeadas durante a estadia. O chefe da base diz-nos que provavelmente só poderá disponibilizar o contentor a 14 ou 15 de Janeiro, o que nos cria alguma inquietação. De facto o navio deixou a baía e rumou ao estreito de Bransfield para fazer algum trabalho de investigação e recolha de dados e amostras... entretanto os restantes materiais que faltam carregar ficaram no cais e nós só podemos ver e esperar. Na realidade começamos a fazer planos alternativos e a re-calendarizar experiências. A verdade é que a investigação na Antárctica, por melhor planeamento que tenha, requer uma grande dose de flexibilidade e vimos preparados para vários cenários. Vamos ter de aguentar mais uns dias. Entretanto esta manhã aproveitámos o bom tempo para um pequeno passeio pelo intertidal perto do estreito que separa King George Island de Nelson Island. Entre as rochas é possível encotrar várias poças de maré que albergam várias espécies de algas e invertebrados como lapas e anfípodes. Fizemos alguns videos e também procurámos por uma espécie de pequenos peixes antárticos que poderão ser bons modelos para futuras investigações. Estes, da espécie Harpagifer antarcticus, vivem entre as rochas e é necessário vira-las na maré baixa para os encontrar. Pela tarde voltámos a Escudero, desta vez para, com mais tempo, falar com Marcelo Gonzalez, director cientifico do INACh, instituto da Antaractico Chileno, e Luis Vargas, outro conhecido e colaborador, professor na Universidade Austral do Chile, que nos trazia alguns materiais desde Punta Arenas. Discutimos a possibilidade de realizarmos algumas actividades conjuntas nesta época e assistimos à sessão de palestras que ocorrem todas as quintas em Escudero. À noite mais um jantar de cerimónia... agora para dizer adeus aos cientistas que vão embarcar no Xue Long, e com a presença do director geral da campanha Antarctica chinesa... e mais alguns discursos. O navio voltou a meio da manhã e carregou a restante carga. Pode ser um sinal de que podemos finalmente começar a instalar os tanques. Não renegámos o convite para visitar o Xue Long. Este quebra-gelos é enorme, com 167 metros de comprimento e 25 de largura e mais de 8 conveses, funciona como porta-contentores e base de helicóptero, e alberga laboratórios de oceanografia, química marinha, microbiologia, climatologia, entre outros. Realmente um gigante, este dragão das neves, a tradução de Xue Long.
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