DIÁRIOS DE CAMPANHA
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A campanha de campo de 2017 do projecto CIRCLAR chegou ao fim. E, como é normal (e necessário), é fundamental começar-se por fazer uma avaliação de como ela se desenrolou. De uma maneira geral decorreu bastante bem tendo-se atingindo todos os objectivos que estavam previstos. A utilização do drone foi efectuada na região alvo definida (Meseta Norte da Península de Fildes). Foi coberta praticamente toda a extensão de superfície pré-definida, substituindo alguns dos locais de lançamento (com cobertura excessiva de neve) por outros com maior exposição da superfície (com menores coberturas de neve). Com os processamentos das imagens que fomos fazendo ao longo da campanha enquanto estávamos na base (quase sempre ao fim do dia, mas também durante o dia quando o mau tempo nos prendia lá dentro), foi já possível obter uma aproximação relativamente precisa dos números envolvidos: fizemos um pouco mais de 30 voos em regiões de características variadas e planeamentos distintos (menores alturas para obter mais pormenores da superfície, maiores alturas para cobrir áreas mais amplas, voos cruzados e não cruzados) em que foram captadas quase 5000 imagens com resoluções espaciais entre cerca de 3 mm e 3 cm/pixel ocupando a maior área contígua coberta cerca de 1 km2. E, por causa do mau tempo (‘what else?’), conseguimos somente fazer voos decentes em 5 dos dias das cerca de 2 semanas em que estivemos instalados em Escudero. Pode parecer pouco, mas conhecendo bem o clima desta região Antártica, nós achamos que foi excelente! A tarefa complementar de captar com DGPS as coordenadas precisas dos pontos de controlo marcados com umas pequenas bandeirinhas foi toda realizada num único dia, naturalmente de pior tempo e em que não era possível voar o drone. Por fim, no penúltimo dia, deu ainda para fazer uma pequena apresentação (20 min) sobre o nosso projecto nos seminários das 5as feiras organizados na base Escudero. Estes seminários semanais permitem que os investigadores de várias nacionalidades e de outros programas polares instalados nas várias bases de King George, ou até de outros colegas que estão em trânsito em Escudero, descrevam os seus projectos e actividades. Nesse dia, as apresentações estiveram a cargo de investigadores de nacionalidades portuguesa (eu e o Pedro Ferreira), chilena, alemã, uruguaia e norte-americana. A assistência em termos de nacionalidades era ainda mais variada, permitindo de uma forma relativamente informal discutir os vários temas científicos apresentados. A diversidade de temas científicos apresentados é também muita variada e tanto pode estar relacionada com a atmosfera e as alterações climáticas, a geologia e a paleontologia ou com a biologia marinha e as colónias de pinguins, entre tantas outras possibilidades. E várias vezes alguns resultados são mesmo apresentados em primeiríssima mão! Foi o que também nos aconteceu a nós, em que foi possível mostrar algumas das imagens captadas e alguns dos mosaicos preliminares que já tínhamos conseguido construir nos dias anteriores. Logo a seguir ao fim do seminário, começámos a fazer as malas, limpar e arrumar todo o equipamento e também as coisas pessoais. No dia seguinte, 3 de Fevereiro regressámos a Punta Arenas no Chile num voo fretado pelo KOPRI, Instituto Polar Coreano. Foi também uma oportunidade para conhecermos outros investigadores, mas também para nos reencontramos com colegas conhecidos que, vindos de outras bases e regiões da Antártida, também estavam de regresso a casa. Naturalmente, deu para pôr a conversa em dia, falarmos do que estivemos a fazer e também começar já a discutir por vezes com pormenor a campanha do próximo ano. E por vezes até dos anos seguintes, pois tudo tem de ser discutido e planeado com a devida larga antecedência. O tempo na manhã do regresso estava quase tão bom como no dia em que tínhamos chegado, de céu bem limpo, o que nos permitiu chegar ao Chile à hora programada. Depois foi voltar a Portugal, numa maratona de quase 12 mil quilómetros. Já em Lisboa, eu e a Sandra já definimos com bastante precisão o que iremos fazer com os novos dados trazidos da Antártida e a forma como nos próximos meses os iremos processar e integrar com outros de que já dispúnhamos. Não há tempo a perder, não tarda nada a campanha do próximo ano está já aí à porta.
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Na baía de Ardley, onde se situa a base chilena “Escudero“, que nos acolheu, encontramos também a base russa ”Bellingshausen”. Um pouco afastada desta, num cume, vislumbra-se a encantadora igreja ortodoxa russa da Antártida. Foi construída em 2002 na Rússia, com madeiras de pinho e cedro siberianos, para no ano seguinte ser desmontada e transportada por terra até ao porto de Kaliningrado, e depois por mar até este local. A reconstrução na Antártida levou cerca de dois anos. A igrejinha de madeira está ligada a uma espessa camada de lavas vulcânicas por estruturas de aço que a estabilizam e permitem que resista às tempestades e ventos fortes que aqui se fazem sentir. Foi entretanto também construída uma réplica na cidade de Valday, na Rússia, para que mais pessoas a possam conhecer. Aqui, é uma experiência muito forte visitá-la: um belíssimo exemplo do que é capaz o espírito humano!
Saímos pelas 9h00, logo após o briefing matinal com o chefe de base. Dirigimo-nos, eu, o Pedro Pina e o Pedro Ferreira, para a Meseta Norte, um planalto no interior da Península que é também a sua região mais elevada. Na subida para a Meseta fomos reencontrando as nossas companheiras skuas, que já parecem estar a habituar-se à nossa presença, e se mostram menos defensivas e mais curiosas. O tempo apresentava-se perfeito: pouco vento, muito boa visibilidade. Mas também muito frio, sobretudo no topo da Meseta. De tal forma que, depois de dois primeiros voos bem-sucedidos, as baterias do drone arrefeceram demasiado, e este começou a apresentar comportamentos erráticos, com dificuldades de ligação ao controlador. Optámos por isso por guardar todas as baterias em bolsos interiores dos casacos, e fazermo-nos de novo ao caminho, para as aquecer. Descemos a vertente norte da Meseta, na direcção da costa, e encontrámos um enorme campo de círculos de pedra, com mais de 1Km de extensão. Estes círculos formam-se espontaneamente em solos susceptíveis a ciclos de variações térmicas, através de um mecanismo de circulação convectiva da camada superficial do terreno. No interior dos círculos o material mais fino surge à superfície, afastando para a periferia os solos de textura mais grosseira. No local que visitámos, o interior dos círculos apresentava muitas vezes contraste de cor em relação à periferia, dando ainda mais beleza a estes campos. Por esta altura as baterias do drone já tinham aquecido com a caminhada, e pudemos realizar vários voos nesta região. O regresso à base tinha de ser em passo rápido, pois fazia-se tarde! Caminhámos um pouco ao longo da costa, espreitando bonitas praias povoadas por lobos e elefantes marinhos, mas inflectimos rapidamente para o interior, contornado a Meseta pelos seus lados Norte e Oeste, até chegarmos à base, já em cima da hora do jantar. Estávamos os três estafados, depois de um dia inteiro a caminhar (12 km no total) mas muito contentes com o trabalho feito. A seguir ao jantar, como de costume, eu e o Pedro Pina ainda processámos e analisámos algumas das imagens adquiridas durante o dia. Para mim, que estou na Antártica pela primeira vez, este foi o dia em que comecei a sentir-me verdadeiramente à vontade com as condições do terreno. Gosto de caminhar no frio, a neve e o gelo já não me causam insegurança no pisar, e a alma alimenta-se de tanta vastidão e beleza. Parece-me que apanhei o “bichinho da Antártida”…
E ao terceiro dia não deu mesmo para voar. O tempo logo de manhã não estava famoso, verdadeiro contra-senso, pois duvido que haja alguém mais badalado na Antártida do que o tempo. Decidimos na mesma sair da base até à Meseta Norte, pois as previsões indicavam uma melhoria para o fim da manhã. Lá fomos, por lá andámos, à espera da tal melhoria, mas nada, a dita cuja não apareceu mesmo. Depois de bem pingados, decidimos voltar à base a tempo ainda de almoçar. Foi uma higiénica voltinha de mais de 5 km. E bem o fizemos porque à tarde choveu mais, nevou também, soprou uma ventania dos diabos e a neblina caiu até cá abaixo. Foi uma oportunidade para ficarmos na base e começarmos a processar as imagens captadas nos voos dos dias anteriores. É fundamental avaliar já a qualidade da informação captada para, caso seja necessário, fazer correcções. Em suma, é preciso montar as várias imagens individuais num mosaico de maiores dimensões usando métodos de processamento de imagem adequados, testando e escolhendo os parâmetros mais apropriados. Por fim, obtém-se um modelo digital de elevação que permite ortorrectificar o mosaico das imagens. É um processo relativamente moroso, nem sempre fornecendo bons resultados nas primeiras iterações. Por exemplo, é por vezes complicado ‘colar’ as regiões com neve (todas iguais ou muito parecidas), sendo no entanto um processo que se torna bem mais simples quando as pegadas que lá deixamos aparecem nas imagens. Em boa hora apanhados! Mas é sempre com expectativa que esperamos pelo resultado final que, quando atinge a desejada qualidade, nos deixa sempre encantados. Poder ver de cima uma superfície de terreno, que naturalmente nos é inacessível, continua ainda a ser para mim um espanto. Por outro lado, a quantidade de baterias que é sempre necessário pôr a carregar após a vinda da rua não deixa de ser impressionante. E mostra bem a nossa actual dependência da tecnologia. Contei, entre as várias baterias do drone e respectivos comandos, máquinas fotográficas, gps, walkie-talkies ou power-banks, mais de uma dúzia!
Pedro Pina, 22 de Janeiro de 2017, Ilha de King George Se há coisa que na Antártida não se pode planear antecipadamente são as actividades a realizar diariamente numa campanha de campo, por causa da Dona Meteorologia ou, para manter a igualdade de género, do Senhor Tempo. Naturalmente que os objectivos devem ser claros, o que se pretende atingir também, assim como a forma de o realizar. Mas sempre a um nível alto, como um todo, sem pensar nos pormenores, com um horizonte temporal largo, da largura da duração da campanha. É depois na execução diária da campanha, conforme as etapas forem sendo ultrapassadas, que se pode pensar no momento seguinte, às vezes no dia que virá depois, mas muitas outras vezes somente na tarde que aí vem. É um pouco como navegar com a costa à vista. No nosso 2º dia de campo, tínhamos previsto voltar à Meseta Norte, mas rapidamente percebemos que a neblina a cobria quase na íntegra. Concluímos que, depois de esperar um pouco, a coisa não deveria alterar-se rapidamente. Olhando para sul, o céu estava um pouco mais limpo e a cobertura de nuvens um pouco mais alta. Ala que se faz tarde, para aí fomos nós, eu, a Sandra Heleno e o Pedro Ferreira, levando connosco uma pequena ‘ração de combate’ para podermos passar todo o dia no campo.
Fizemo-nos novamente ao caminho e, uma vez que a chuva parou e o vento amainou, fomos fazendo vários voos com o drone em áreas com características superficiais distintas, com maior predominância de líquenes ou de musgos e de rochas ou de solos. Foram sempre voos relativamente baixos (30 m de altura e até menos), cobrindo áreas mais pequenas do desejado, porque a neblina não deixava espaço para maiores voos. Apesar de tudo foi um bom dia de trabalho que, no regresso à base, acabou em beleza com a passagem pelas praias dos lobos e dos elefantes marinhos.
Depois de termos arranjado um canto e umas mesas para colocarmos os nossos equipamentos e da breve reunião matinal diária do chefe de base com todos os investigadores responsáveis de projectos para se identificar as actividades (e necessidades) do dia, decidimos fazermo-nos ao campo, na companhia do Pedro Ferreira do projecto GEOPERM, que é geólogo do LNEG, e que tem vindo a elaborar a cartografia geológica desta região. Definimos como zona prioritária do nosso projecto a Meseta Norte da Península de Fildes, onde iremos captar imagens de alta resolução com um drone. Interessa-nos conhecer em pormenor o que se passa à escala centimétrica nalgumas superfícies desta ilha que já não têm gelo (que tipo de solo, de rocha, ou de vegetação por exemplo), para depois podermos perceber o que se passa nas imagens de satélite, que já não permitem distinguir tão bem esses tipos entre si (se por exemplo é musgo ou líquen), mas que permitem estudar áreas maiores porque cobrem regiões bem mais extensas. Ou seja, usamos esta região como uma espécie de laboratório natural para conhecer pormenores da sua superfície que depois poderão ser extrapolados para toda a Península Antártica de forma a perceber a dinâmica actual das regiões livres de gelo e a sua relação com as alterações climáticas. Nesta campanha, daremos uma particular atenção a um padrão natural típico das regiões polares, os círculos de pedras, que se forma e evolui pela dinâmica da camada superficial da superfície. Voltaremos aos círculos mais tarde noutros postes quando já tivermos imagens captadas este ano. Apesar de o tempo estar cinzentão, arriscámos sair e esperar que abrisse um pouco. E assim foi. Voltei à Meseta Norte cinco anos depois. Após uma caminhada de uns bons 2 km desde a base, fizemos um breve reconhecimento e dirigimo-nos para o primeiro ponto de trabalho que tínhamos escolhido no nosso planeamento para prepararmos os voos com o drone. Fizemos somente 2, depois de abrir ligeiramente. Foi curto, pois tínhamos previsto fazermos 5, mas o tempo não permitiu mais a partir de determinada altura. A neblina começou a baixar, o vento a soprar um pouco mais forte e também a nevar. Decidimos regressar à base. Foi pouco mas correu bem, permitindo também avaliar o comportamento do drone que ainda não tinha sido usado aqui em Fildes. Amanhã também haverá dia. E eles são bem longos por aqui nesta altura do ano. A equipa do projecto CIRCLAR, Pedro Pina e Sandra Heleno, já está na Antártida, onde chegou a 19 de Janeiro de 2017. Tudo começou em Lisboa uns dias antes, a 14 de Janeiro, rumo ao hemisfério sul. O périplo até à ilha de King George nas Shetland do Sul, como sempre longo, incluiu trânsito de avião por Buenos Aires e Rio Gallegos (Argentina), seguido de uma viagem de autocarro pela ‘Ruta del Fin del Mundo’ até Punta Arenas no Chile. A tradicional e obrigatória chegada antecipada a Punta Arenas (3 dias antes do voo para a Antártida) foi passada a comprar pequenos materiais, afinar o planeamento da campanha e a acabar algum ‘trabalho de casa’ que ainda estava pendurado. Fomo-nos também encontrando com outros colegas portugueses, e de outras nacionalidades, que também estavam à espera de embarcar para a Antártida. O ponto de encontro, normalmente para irmos jantar, é já um clássico, e só podia mesmo ser junto à estátua de Fernão de Magalhães. O voo para a Antártida, fretado pelo Programa Polar Português PROPOLAR e que veio completamente cheio de investigadores de várias nacionalidades, correu sobre rodas. Saiu e chegou no horário previsto, pois o tempo estava excelente, algo que nunca me aconteceu nas 4 missões anteriores que fiz até cá. Como penso que ele será descrito noutro post não entrarei em mais pormenores. Na península de Fildes onde aterramos, o céu estava azul e praticamente limpo, e a temperatura rondava os 6 graus positivos, portanto um dia antártico totalmente anormal. Descemos a pé do aeródromo até à base de chilena de Escudero onde nos viemos instalar. A base está sobrelotada porque alguns navios, que era suposto apanharem muitos dos investigadores acabados de chegar, estão atrasados vários dias. Esta já é uma situação normal, sobretudo aqui em Escudero que é um local de passagem mais frequente, e todos temos de nos apertar um pouco, pois ninguém fica na rua. As expectativas de que a campanha nos corra bem são, como sempre, altas, mas sabendo muito bem que tudo vai ter de ser gerido dia a dia, conforme o tempo nos permita ou não sair para a rua.
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