DIÁRIOS DE CAMPANHA
|
DIÁRIOS DAS ATIVIDADES DE CAMPO DOS PROJETOS DURANTE A CAMPANHA PROPOLAR 2016-2017
Em Great Wall, como em todas as bases antárcticas, o calçado utilizado no exterior fica à entrada dos edifícios. Muitas têm mesmo uma antecâmara para o efeito. É que dependendo do tipo de investigação e zonas percorridas, as nossas botas podem vir molhadas, por neve, gelo, água ou água salgada, enlameadas, cheias de lodo, com restos de vegetação, com dejectos de pinguim, ou com misturas avulsas destas várias possibilidades. Assim, cada vez que entramos descalçamos, e cada vez que saímos calçamos! E no interior dos edifícios a rotatividade dos chinelos chega mesmo a ser algo desconcertante, e nem sempre os há para todos, com caixas cheias de peças avulsas a aparecer cada vez que aumenta o número de convivas para o jantar. Aqui em Great Wall a nossa rotina diária leva-nos a quatro edifícios: o dormitório, o refeitório, os banhos e o laboratório. Calçamos de manhã, descalçamos para o banho, calçamos para voltar ao quarto, descalçamos quando chegamos ao dormitório, calçamos para sair para o pequeno-almoço, descalçamos para entrar no refeitório, calçamos para sair, descalçamos quando chegamos ao laboratório, calçamos para ir recolher material ou verificar os peixes, descalçamos para voltar a entrar, calçamos para ir almoçar, descalçamos ao entrar no edifício, calçamos para sair e assim sucessivamente até que descalçamos para ir dormir. Uff...!!! Neste processo trocamos de chinelos dezenas de vezes por dia, que passam pelos dois pés dos vários locatários da base... há muitos pares que não estão juntos, e cada um calça o que está mais à mão... ou ao pé neste caso. E nas horas de ponta a quantidade de pessoas a chegar deixa na antecâmara um alvoroço de pares de botas espalhadas pelo chão... quais são quais à saída? Para complicar, o contingente chinês recebe do seu programa antárctico dois pares de botas distintas, mas idênticas para todos... é de facto interessante que não as confundam. Tanto foi o caos que nos últimos dois dias um dos membros da equipa da base criou uma espécie de parque de estacionamento para sapatos, com fita adesiva a delimitar zonas para deixar as botas... Ora é aqui que entra a saga das botas viajantes: as minhas! As minhas botas não têm nada que ver com as dos chineses e no entanto desapareceram logo no primeiro dia de Antarctica. Explico: dia 8, após o almoço, viemos para o laboratório e as botas ficaram à entrada, como deve ser. E quando quis sair... não estavam. Depois de verificarmos com o pessoal e cientistas da base lembrá-mo-nos que por essa hora fomos visitados por um grupo de turistas... chineses... e que provavelmente alguém trocou as botas. Ora agora perguntam vocês como pode alguém não reconhecer as suas proprias botas. Pois, pergunto eu também. Mas parece que pode acontecer... e assim começa a história. Falámos com Alpha Charlie, AC, o nome de código de Alejo Contreras, responsavel da DAP-Antartic Airlines e cicerone destes turistas, que entretanto haviam já partido no voo de volta a Punta Arenas. Et voilá, com a descrição e fotos das botas, AC conseguiu encontrar o distraído “meliante”, recuperar as botas e fazer com que as colocassem num voo de volta dentro de 2 dias. E pronto, pensam vocês, acabou aí a história, com um par de botas extra, sem dono e perdido algures em Great Wall. Pois era bom mas não foi assim. As botas voltaram a King George num voo que trazia mais alguns chineses e AC deixou-as com o chefe da base chinesa para as trazer... para a base. Este, que entretanto tinha à sua responsabilidade os outros chineses em trânsito para a base brasileira Comandante Ferraz, em reconstrução, não percebeu bem as indicações de AC, e levou o grupo de chineses (e às minhas botas) até à praia para embarcarem no navio brasileiro para a Baía do Almirantado, acessível por helicóptero ou 3 horas de navio. Distribui-lhes o equipamento e sem se aperceber, entregou as minhas a botas a um dos operários chineses que havia recebido apenas dois dos três pares devidos. E assim, estas botas foram fazer mais um percurso sem mim, e sem o meu conhecimento... até que AC voltou a Great Wall para recolher as botas deixadas pelo turista chinês (que neste momento continuam por identificar definitivamente...) e percebemos que as minhas não voltaram... Depois de esclarecermos o que se teria passado, contactamos a comitiva chinesa em Ferraz, o chefe directamente, e eu através do interprete chinês-brasileiro da empresa de construção que conheci o ano passado aqui em Great Wall.
Mais algum trabalho de detective, num twist de princípe da Gata Borralheira, e eis que foram novamente identificadas as botas! Mas agora, como as fazer voltar a Great Wall? Eis que num conjunto de coincidências, um helicóptero fazia hoje, dia 13 Janeiro, o périplo entre algumas bases... e assim, ás 15 horas de hoje, 120 horas depois do seu desaparecimento, com quase 5000 km percorridos, entre avião, navio e helicóptero, e com a intervenção de pessoas na Antárctica, América do Sul e na China, volto a reunir-me com as minhas queridas botas!!! A cooperação internacional juntou-se por uma grande causa!
0 Comentários
O seu comentário será publicado depois de ser aprovado.
Deixe uma resposta. |
DIÁRIOS DA CAMPANHA
|